segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Não faço planos para a vida para não atrapalhar os planos que a vida tem para mim.


"Pela gravata morre o tímido" - Crónica extraída do livro «Cronicando» de MIA COUTO


De tanto esperar o amor, ele acabou por amar a espera. Era Horácio, de olhos inodoros, vida acanhada e sonhos aguados. Tímido e desencorporado, ele era um subexistente. Os outros arrumavam-se com as namoradas, exercendo-se. Horácio não, solteirava em estado de deserto sensual.- Às vezes tenho-me pena – suspirava.Os amigos escutavam-lhe a solidão, compaixonados. Havia que ajudar Horácio a sair de si, desentocar-se. Procuraram uma miúda que aceitasse dar despacho aos suspiros do solitário. Não existia nenhuma. Horácio, diziam elas, é caril sem tempero, carente de vivência. Os amigos não tinham coração a medir: continuaram, indagando toda a garotoria disponível. Nenhuma acolhia a ideia. Até que se lembraram de Marta, a gorducha do bairro. Ela aceitou. (...)"Nessa mesma noite, iriam os dois ao baile no clube ferroviário. No fundo, também ela sofria de solidão. A alma dela corria o risco das ilhas distantes que, para serem vistas, carecem de muita viagem. A gorda vestiu-se do melhor: foi ao fundo do armário e ajeitou os veludos sobre o imenso corpo. Eram tantas as carnes e tão sobradas do corpo que o vestido parecia curto, perigosamente ínfimo.A menina carnosa olhou-se ao espelho e quase desistiu. A imagem dela excedia o reflexo. Quis ir à balança mas teve medo. Só uma perna chegaria para desmanchar o ponteiro. Sufocada em sua própria redondez, desatou a soluçar. E quando se esperava que gordas lágrimas escorressem, afinalmente, se viu descerem lagriminhas estreitas, em pranto quase do passarinho. Marta quis reagir mas aquela era uma tristeza talentosa: ela ficou, sentada no assento das horas. No outro canto da cidade, Horácio tentava entender os abismos da vida. A ideia de ir ao baile lhe aterrorizava.- Mas fazer o quê?Os outros empurravam-no para fora do medo. Ora, você vai, estão lá as miúdas. O pobre Horácio estremecia só de pensar. As miúdas! Queria explicar os seus temores, dizer que tudo em si permanecia internamente. Era como um prisioneiro que, de tanto cativeiro, acabara receando a liberdade. - Não sei mexer com miúdas. Os outros riram-se e forçaram-no a que se vestisse. Horácio era só corpo, desprovido de vontade. Meteram-lhe uma gravata vermelha, ordenando que a usasse assim, sem casaco. Foram pondo ornamentos: óculos escuros, cinto prateado, gola alevantada. Explicaram-lhe alguns trejeitos, tiques e gestos próprios de quem quer acabar a noite em dupla horizontal.Horácio enfrentou-se ao espelho, nem se reconheceu. Tossiu para ver se o espelho lhe devolvia a aflição. Os amigos ironizaram, divertidos com o novo Horácio, parecia um mascarado fora da época. - São horas, Horácio. Agora, passa a buscar a Marta. Ele ainda ensaiou barafrustrar. Quem sabe se ela não está disposta, não será que é demasiado cedo? Mas foi indo, os outros atrás, assegurando-se que o tipo não escapava no virar da esquina...."
(...)Foi subindo as escadas do prédio de Marta. Em cada andar se livrava de um enfeite. No primeiro, tirou os óculos. No segundo, retirou o cinto. No terceiro, ajeitou o cabelo e baixou a gola. Só depois de ter tocado a campainha deu conta da gravata, essa tira de mau gosto que lhe pesava toneladas. Mas não dava tempo de a tirar, já alguém abria a porta. Era Marta, espreitando uma entrefresta. Horácio, por aquela nesga, só vislumbrava uma fatia da gorda.
- Sou Horácio, venho buscá-la para a festa.
Marta respondeu que ainda não se aprontara. Pela abertura examinava o candidato, atento ao detalhe dele.
- Como disse que se chama?
- Sou o Horácio.
- Tem uma gravata muita bonita, Horácio.
Ele entrou e esperou na sala enquanto ela, no quarto, terminava a enfeitação. Esperou, esperou, esperou. Foi nesse enquanto que começou de escutar um soluço: no compartimento ao lado, alguém chorava. Era um pranto que vinha das profunduras, uma tristeza que atravessava galerias até desabrochar em lágrimas. Horácio empurrou ao de leve a porta do quarto e chamou:
- Marta!
Do outro lado, o silêncio. Ele insistiu e foi entrando mais um pouco. Foi então que uma mãozinha gorda lhe agarrou na gravata e, de um puxão vigoroso, o atirou para cima da cama. Horácio não viu nem ouviu: apenas sentiu um planeta deitando-se sobre o seu corpo desprevenido.
Quem visita o casal, hoje, nota na parede da sala o mais estranho quadro: enquadrada em moldura dourada, uma gravata vermelha. E ainda agora, tantos anos passados, nos dias de humidade, Horácio se queixa de dores no pescoço, resultado da sua primeira aterrisagem, torcicolado, nos domínios amorosos.""

sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

OLHE AQUI, MR. BUSTER – VINICIUS DE MORAES

Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certoQue o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa em Beverly Hills.Está muito certo que em seu apartamento de Park AvenueO Sr. tenha um caco de friso do Partenon, e no quintal de sua casa em HollywoodUm poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro e de noite para lhe dar insóniaEstá muito certo que em ambas as residências o Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu preconceito racial por muitos anos a vir, e vacuum-cleaners com mais chupo que um beijo de Marilyn Monroe, e máquinas de lavarcapazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto tanto dinheiro em vão na guerra da Coreia.Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente de torradeiras automáticasE suas portas se abram com célula fotelétrica. Está muito certoQue o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem filmes de mocinhoIsto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fiCom alto-falantes espalhados por todos os andares, inclusive nos banheiros.Está muito certo que a Sra. Buster seja citada uma vez por mês por Elsa MaxwellE tenha dois psiquiatras: um em Nova York, outro em Los Angeles, para as duas "estações" do ano.Está tudo muito certo, Mr. Buster – o Sr. ainda acabará governador do seu estadoE sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço e consciências enlatadas.Mas me diga uma coisa, Mr. BusterMe diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?

E pra começar... O elogio do amor!

Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, banançides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também." Miguel Esteves Cardoso