De tanto esperar o amor, ele acabou por amar a espera. Era Horácio, de olhos inodoros, vida acanhada e sonhos aguados. Tímido e desencorporado, ele era um subexistente. Os outros arrumavam-se com as namoradas, exercendo-se. Horácio não, solteirava em estado de deserto sensual.- Às vezes tenho-me pena – suspirava.Os amigos escutavam-lhe a solidão, compaixonados. Havia que ajudar Horácio a sair de si, desentocar-se. Procuraram uma miúda que aceitasse dar despacho aos suspiros do solitário. Não existia nenhuma. Horácio, diziam elas, é caril sem tempero, carente de vivência. Os amigos não tinham coração a medir: continuaram, indagando toda a garotoria disponível. Nenhuma acolhia a ideia. Até que se lembraram de Marta, a gorducha do bairro. Ela aceitou. (...)"Nessa mesma noite, iriam os dois ao baile no clube ferroviário. No fundo, também ela sofria de solidão. A alma dela corria o risco das ilhas distantes que, para serem vistas, carecem de muita viagem. A gorda vestiu-se do melhor: foi ao fundo do armário e ajeitou os veludos sobre o imenso corpo. Eram tantas as carnes e tão sobradas do corpo que o vestido parecia curto, perigosamente ínfimo.A menina carnosa olhou-se ao espelho e quase desistiu. A imagem dela excedia o reflexo. Quis ir à balança mas teve medo. Só uma perna chegaria para desmanchar o ponteiro. Sufocada em sua própria redondez, desatou a soluçar. E quando se esperava que gordas lágrimas escorressem, afinalmente, se viu descerem lagriminhas estreitas, em pranto quase do passarinho. Marta quis reagir mas aquela era uma tristeza talentosa: ela ficou, sentada no assento das horas. No outro canto da cidade, Horácio tentava entender os abismos da vida. A ideia de ir ao baile lhe aterrorizava.- Mas fazer o quê?Os outros empurravam-no para fora do medo. Ora, você vai, estão lá as miúdas. O pobre Horácio estremecia só de pensar. As miúdas! Queria explicar os seus temores, dizer que tudo em si permanecia internamente. Era como um prisioneiro que, de tanto cativeiro, acabara receando a liberdade. - Não sei mexer com miúdas. Os outros riram-se e forçaram-no a que se vestisse. Horácio era só corpo, desprovido de vontade. Meteram-lhe uma gravata vermelha, ordenando que a usasse assim, sem casaco. Foram pondo ornamentos: óculos escuros, cinto prateado, gola alevantada. Explicaram-lhe alguns trejeitos, tiques e gestos próprios de quem quer acabar a noite em dupla horizontal.Horácio enfrentou-se ao espelho, nem se reconheceu. Tossiu para ver se o espelho lhe devolvia a aflição. Os amigos ironizaram, divertidos com o novo Horácio, parecia um mascarado fora da época. - São horas, Horácio. Agora, passa a buscar a Marta. Ele ainda ensaiou barafrustrar. Quem sabe se ela não está disposta, não será que é demasiado cedo? Mas foi indo, os outros atrás, assegurando-se que o tipo não escapava no virar da esquina...."
(...)Foi subindo as escadas do prédio de Marta. Em cada andar se livrava de um enfeite. No primeiro, tirou os óculos. No segundo, retirou o cinto. No terceiro, ajeitou o cabelo e baixou a gola. Só depois de ter tocado a campainha deu conta da gravata, essa tira de mau gosto que lhe pesava toneladas. Mas não dava tempo de a tirar, já alguém abria a porta. Era Marta, espreitando uma entrefresta. Horácio, por aquela nesga, só vislumbrava uma fatia da gorda.
- Sou Horácio, venho buscá-la para a festa.
Marta respondeu que ainda não se aprontara. Pela abertura examinava o candidato, atento ao detalhe dele.
- Como disse que se chama?
- Sou o Horácio.
- Tem uma gravata muita bonita, Horácio.
Ele entrou e esperou na sala enquanto ela, no quarto, terminava a enfeitação. Esperou, esperou, esperou. Foi nesse enquanto que começou de escutar um soluço: no compartimento ao lado, alguém chorava. Era um pranto que vinha das profunduras, uma tristeza que atravessava galerias até desabrochar em lágrimas. Horácio empurrou ao de leve a porta do quarto e chamou:
- Marta!
Do outro lado, o silêncio. Ele insistiu e foi entrando mais um pouco. Foi então que uma mãozinha gorda lhe agarrou na gravata e, de um puxão vigoroso, o atirou para cima da cama. Horácio não viu nem ouviu: apenas sentiu um planeta deitando-se sobre o seu corpo desprevenido.
Quem visita o casal, hoje, nota na parede da sala o mais estranho quadro: enquadrada em moldura dourada, uma gravata vermelha. E ainda agora, tantos anos passados, nos dias de humidade, Horácio se queixa de dores no pescoço, resultado da sua primeira aterrisagem, torcicolado, nos domínios amorosos.""
(...)Foi subindo as escadas do prédio de Marta. Em cada andar se livrava de um enfeite. No primeiro, tirou os óculos. No segundo, retirou o cinto. No terceiro, ajeitou o cabelo e baixou a gola. Só depois de ter tocado a campainha deu conta da gravata, essa tira de mau gosto que lhe pesava toneladas. Mas não dava tempo de a tirar, já alguém abria a porta. Era Marta, espreitando uma entrefresta. Horácio, por aquela nesga, só vislumbrava uma fatia da gorda.
- Sou Horácio, venho buscá-la para a festa.
Marta respondeu que ainda não se aprontara. Pela abertura examinava o candidato, atento ao detalhe dele.
- Como disse que se chama?
- Sou o Horácio.
- Tem uma gravata muita bonita, Horácio.
Ele entrou e esperou na sala enquanto ela, no quarto, terminava a enfeitação. Esperou, esperou, esperou. Foi nesse enquanto que começou de escutar um soluço: no compartimento ao lado, alguém chorava. Era um pranto que vinha das profunduras, uma tristeza que atravessava galerias até desabrochar em lágrimas. Horácio empurrou ao de leve a porta do quarto e chamou:
- Marta!
Do outro lado, o silêncio. Ele insistiu e foi entrando mais um pouco. Foi então que uma mãozinha gorda lhe agarrou na gravata e, de um puxão vigoroso, o atirou para cima da cama. Horácio não viu nem ouviu: apenas sentiu um planeta deitando-se sobre o seu corpo desprevenido.
Quem visita o casal, hoje, nota na parede da sala o mais estranho quadro: enquadrada em moldura dourada, uma gravata vermelha. E ainda agora, tantos anos passados, nos dias de humidade, Horácio se queixa de dores no pescoço, resultado da sua primeira aterrisagem, torcicolado, nos domínios amorosos.""
1 comentário:
Uma vénia a Mia Couto. Fantastico mais uma vez.
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