segunda-feira, 2 de junho de 2008

País a pontapé



A mentalidade submissa. Os dias engarrafados, anestesiados.
O presente em zapping, sem comando, visto do sofá.
O futuro daqui a nada, mas pré-pago, panorâmico e digital.
A liberdade de sermos apenas o que quiserem fazer de nós.
Financiaram-nos o que não queríamos nem precisávamos, a juros bonificados.
Depois, em suaves prestações ou pagando mais tarde. No fim de contas, levam-nos a pele, os ossos, os sonhos, como sinal. E uma vida inteira para amortizar.
Foi lá atrás que deixamos de ser cidadãos para passarmos a clientes.
Fazemos downloads das nossas ansiedades e vamos para a cama com o messenger.
Taxaram-nos a esperança, o horizonte, o hoje para financiar o amanhã.
Disseram-nos que, em última instância, o Estado regularia, velaria por nós. Só não nos disseram que o Estado já era também cliente, jogava na bolsa e no «off-shore», tinha vícios caros e amantes no privado. Esconderam-nos que o Estado já nem sequer regula bem. E, às vezes, não regula de todo.
Não sei quando começaram a falar-nos de livre iniciativa, economia de mercado, liberalização disto e privatização daquilo. Tudo em nosso nome, iríamos perceber a sensação. A concorrência em benefício do consumidor, mais opções, melhor qualidade. Não nos disseram o que queriam em troca. Não nos disseram quanto custava. Não perguntamos. E agora descobrimos que o seguro não cobre todos os riscos.
Aqui, despede-se e «reestrutura-se» em almoços de camarão da costa, moet & chandon e jaguar à porta. Congelam-se ordenados entre baldes de gelo e um «15 anos.» Fumam-se quatro salários mínimos em charutos, por mês, a discorrer sobre a crise e as dificuldades das empresas.
Original ou réplica, somos o que vestimos.
Somos igualmente o que viajamos, o que compramos, o que almoçamos, o que vemos. Não sei quando deixamos de ser simplesmente…humanos.
Votamos pouco e mal, mas elegemos convictamente marcas e anúncios, estamos decididos a ser a geração Nike ou Adidas e a referendar a Gant ou a Armani.
Aceitamos ficar sem tecto e almoço, mas nunca sem rede.
Vamos a Cancun, Natal e Varadero para ser vistos e mostrar que lá estivemos.
Por vezes, jantamos comida de design porque é «moda» e estamos na moda porque é in».
Pagamos e bebemos água como se fosse Barca Velha.
Buscamos o caminho mais curto para a existência e o equilíbrio emocional no spa, no pilates, na auto-ajuda e no quem nos acuda. Ao farmacêutico, ao psiquiatra e ao personal trainer só falta serem amigos lá de casa.
Endividamo-nos de ilusões, maquilhamos as feridas e angústias, retocamos a ideia que temos de nós e envelhecemos alegremente: tristes e infelizes, mas mais novos, saudáveis e atléticos graças à cirurgia estética e ao ginásio, IVA incluído.
Somos o zero à esquerda das decisões, a estatística gorda da fome, da pobreza, da desigualdade, a escanzelada percentagem de decência e dignidade. Somos, como numa cantiga, «intelectuais de bronzeado» e «elite de supermercado». Somos tema de conferências e colóquios, objecto de sondagens e estudos. Estamos nos resultados, mas nunca entramos na equação. Subtraem-nos nos lucros e fazem-nos cúmplices de prejuízos.
Mas, felizmente, nem tudo está perdido.
Por estes dias, vamos pôr uma bandeirinha na varanda, o disco do Roberto e do Tony, o cachecol no pescoço e comprar «sem juros, pague depois» aquele plasma muito em conta para ver o Ronaldo em grande e os filmes dos pequenos. Gritaremos até às entranhas pela pátria, pela finta, pelo cruzamento, pelo remate. Faltaremos ao trabalho, à família, aos amantes, à «manif» e aos compromissos. Em Junho seremos todos portugueses, todos iguais, todos diferentes: ninguém cobrará dívidas, até porque ninguém as pagaria.
Estaremos todos por Portugal em harmonia fiscal. Chamaremos Scolari de nosso, abriremos conta «no banco de sempre» e correremos atrás do autocarro da Galp e da selecção como no anúncio da televisão porque, entretanto, até boicotamos a gasolina.
De festinha em festança, talvez a sorte nos sorria a pontapé ou à cabeçada.
Quando regressarmos ao que efectivamente somos, estaremos, de novo, orgulhosamente sós. Sempre entre futebol e Fátima, entre um golo e uma oração. E de regresso ao velho fado.
Visao A Devida Comédia – Miguel Carvalho

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