terça-feira, 17 de junho de 2008

Vem


1
Vem. Imagina-te no centro de todas as viagens.
Traz o perfume de outras eras, dos dias felizes em que fomos
alguma coisa mais. Talvez crianças breves, pássaros
feridos por um amor com sede de infinito.

Lembra-me os invernos, os outonos com sabor a erva
e a folhas gastas pelo tempo. E abre-me as janelas
que me fechaste um dia. E deixa-me entrar como uma brisa
em busca dos teus olhos, soprando nos teus cabelos.

Mas vem. Cobre-te de névoa e de flores. Veste o céu azul
e os prados verdes. E sorri, no silêncio possível do reencontro.
Deixa-te cair, nua e leve, nas asas do vento,
como uma pétala de rosa sem destino,
uma bola mágica de sabão
reflectindo sonhos no espaço. E aconchega-te dentro de mim.

Mas vem, anjo de transparências, de mãos brancas e suaves,
fruto exótico das minhas miragens. Vem. Traz a pureza
dos campos, o som das ribeiras correndo pelas encostas,
o murmúrio da noite de encontro às madrugadas.

2

Vem, apenas. Como se o mundo estivesse acabando,
a cada passo que dás em busca do meu sonho. E depois
não houvesse mais nada. Só tu e eu, enlaçados em viagem,
sobrevoando todos os horizontes.

Mas vem. Vem. Vem sem perguntares pelo amanhã,
pelos abismos que se abrem nas fronteiras dos nossos corpos.
Vem apenas. Com a lucidez dos espelhos e a espuma
inquieta do mar, batendo no calhau da praia.

Vem, docemente, como um papagaio de papel-de-seda
em tardes de vento brando. E fala-me de fadas, de castelos,
de rios mansos, onde alguma vez pudemos navegar.
Mas diz-me coisas sobre as árvores e as casas. Ou leva-me
contigo, como se fossemos apenas aves e voássemos com
o mesmo bater de asas. Vem, ou deixa-me morrer
com a tua lembrança numa manhã cinzenta,
com as gaivotas gritando no cais
e os vagabundos repartindo o seu sono
com os meus pesadelos. Mas vem,
como se partisses para sempre
e me esquecesses
nas tempestades das invernias desta ilha
algures perdida no tempo.
Vem.

José António Gonçalves*

(Poeta madeirense, in "Os Pássaros Breves", pgs. 31/32, Colecção "O Lugar da Pirâmide", nº. 38, posfácio de João Rui de Sousa, Ed. Átrio, Lisboa, 1995)

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